sexta-feira, 10 de novembro de 2017







CONTO


                                            
                             A TIA LINDA DA MENINA      





    Início da tarde, o sol já entrava pela janela, hora da tia da menina colocar o dedal no dedo, enfiar a linha na agulha, e sobre o tecido esticado no bastidor começar seu bordado, todo dia era assim, após descanso do almoço. A toalha de mesa já estava pronta, agora era a vez dos guardanapos, o que escutara a tia dizer para a irmã, mãe viúva da menina, que veio morar junto. Os balõezinhos encantavam a menina, que puxava conversa, depois dos estudos, antes de descer à tardinha para pedalar com a prima, dona da bicicleta. Pensava que seria ainda melhor se a tia saísse com sua sobrinha querida para um passeio de bonde, dariam uma volta, até podiam saltar em algum lugar para comprar aquela caixa de lápis de cor, objeto de cobiça da menina, que a prima já exibia a sua na escola. Pensamento bobo, as coisas caras, e poucos podiam ter, o jeito se conformar e continuar observando o ir e vir da agulha no tecido azul cor do céu.
    
Quem dera fosse um céu o casamento para aquela noiva, tão tranquila, mas às custas de medicamento para enxaqueca, há cinco décadas que esperava a realização da promessa de casamento que lhe fizera o noivo no baile de fim de ano. Ele era um estranho, mas que chegou fazendo zoeira, e mesmo sob suspeita, despertou a cobiça de algumas moças da redondeza, o que elas negavam veementemente. Cobiçado, ou não, ninguém podia adivinhar o  caráter de uma pessoa antes de conviver com ela. Foi o que a menina escutou de uma convicta solteirona, tempos depois. O certo é que moça alguma queria ficar solteira, ou seja, deixar de casar e ter filhos, sem o que a vida perdia o sentido, não apenas para a tia da menina, era assim para qualquer mulher, na época.
    
Entre namoro e noivado da tia lá se ia meia década, a avó da menina contando o tempo, enquanto comentava com a outra filha sobre o casamento que já estava perto de acontecer, e ela não sabia a razão, mas sentia o coração apertar toda vez que pensava na filha indo embora de casa com aquele homem. O noivo aceito com reservas, e que chegava para visitar a noiva vestido como um dândi e trazendo balas nos bolsos, o açúcar impróprio para as crianças, a menina de antemão avisada. Até que em maio, mês das noivas, realizou-se o casamento. Erguido um altar naquela mesma sala, o padre amigo da família dando sua bênção e desejando aos nubentes os melhores votos de felicidade,  em nome de Deus. O casal ia morar não muito longe da casa onde a noiva nascera e se criara

Hora de ir para o novo lar, local que a esposa adentraria carregada nos braços do seu eleito, tudo dentro dos conformes. Mas ainda na calçada, em frente à porta, eis que surge uma figura sinistra, era um matador de aluguel, que dispara a queima-roupa um tiro certeiro, que foi parar na coluna do marido da tia da menina, e o deixou paraplégico. O crime fora encomendado pelo pai de uma moça desvirginada pelo ainda noivo da tia da menina, que fugira do compromisso de casar. Fato passado, a menina ia visitar a tia na sua nova residência, e a encontrava sempre debruçada sobre a máquina de bordar, de onde tirava o sustento dela e do marido, além dos agregados, inclusive a filha que o marido tivera antes de casar e a mãe morrera no parto.

O casamento podia ser anulado, por engano de pessoa? Podia, mas não devia, ou devia mas não podia, tanto faz, no caso em questão. Mas o que é a providência divina, tempos atrás a tia da menina havia feito um curso de bordado no Ceará. E foi assim que a moça prendada tornou-se mulher empreendedora. Criou uma grife, e com sua equipe de bordadeiras, trabalhava sem parar. Já tinha encomenda até do exterior. Vieram as filhas, só de dois em dois anos, a conselho do médico, também amigo da família, como o padre. A tia da menina só paria mulheres, que o pai, caixeiro-viajante encostado, brincava da sua cadeira de rodas, que elas iam formar um time de futebol quando crescessem. Mas a mãe parou na oitava, quando escapou de morrer de parto, e formou um time de bordadeiras, só uma seguiu a carreira de enfermagem. A tia Linda, e ela era linda mesmo, teve sorte de escapar da morte e da pobreza, contando com sua paciência e seu trabalho, além do amor...

Nenhum comentário:

Postar um comentário