domingo, 3 de janeiro de 2021

 

 

                         DESTINO

 

Maria e três amigas acabaram de assistir a uma palestra sobre as questões da mulher na atualidade, a escritora palestrante falando para uma plateia feminina, lógico. Rosinha lançou uma pergunta no ar:

— Seremos realmente senhoras do nosso destino? É certo que forjamos a sequência dos nossos dias?

Esmênia ficou curiosa sobre o que pensavam as demais, mas sempre indaga a si mesma sobre sua condição feminina. Disse de pronto:

— Herdamos uma história universal e ancestral, o pensamento coletivo a nos acompanhar. Mas cada uma de nós é responsável por sua própria vida. No meu caso, como escritora e boa leitora — os livros me informam, me instruem, em suma, são minha vida. Venho de uma família de mulheres forte, sempre cultivei opinião própria.

Maria, era dona de casa, deu seu aparte:

—Acho que a influência feminina na história humana presente e pretérita foi determinante para sermos quem somos, e não poderia ser diferente. No decorrer dos anos, séculos, milênios, as mulheres, fizeram história ao lado dos homens. Evocações me falam sobre o destino da mulher mais de cooperação, que submissão. Hoje há uma acirrada guerra entre os gêneros, a ponto desses números assustadores de feminicídio.

Esmênia não pensa diferente:

— Temos que admitir que a exegese pessoal de cada mulher, até aos primeiros sinais da modernidade, era seguir a versão forjada pela mente masculina. As mentes femininas rebeldes de hoje a se anteporem a tudo que veem como retrógrado. E apelam para meios pouco condizentes com a alma feminina, que tende a ser dócil para com o outro sexo, queiram ou não as feministas. Destino, sim, o que só me faz rir.

Estavam próximas dos seus carros, diminuem o passo para melhor escutarem Rosinha falar:

— Se ainda fracassamos, temos que admitir que nós mesmas é que travamos nosso futuro, hoje propício à  mulher para que cumpra sua índole, dentro e fora do lar. Se for preciso, resistir, ter tenacidade, espírito público, em suma ser corajosa para enfrentar as adversidades, que não existe só para as mulheres. O importante é não prosseguir numa luta inglória no confronto entre os sexos. A mulher, que é profissional competente e também é esposa e mãe competente, quer também  realizar o idílico encontro com o homem ideal.

— E qual seria o homem ideal?

A pergunta feita por Esmênia obteve a pronta resposta de Maria:

— Aquele que se equipara à mulher ideal.

                                                         

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INTERPRETO  VERMEER

 

                

MULHER DE AZUL LENDO UMA CARTA

 

 

As mulheres pintadas por Vermeer não querem ser vistas como heroínas, nem divindades decaídas, ou santas, mas que lhes  seja assegurado seu lugar no mundo como pessoas, respeitados seus direitos, sua individualidade. No quadro Mulher de Azul Lendo uma Carta, a veste feminina em azul claro, cor da fé mariana, revela o céu da contemplação. As mulheres rezam e trocam conhecimento e sentimentos, afeitas ao exercício da fé religiosa e assíduas leitoras e escritoras de cartas, prova do seu status, adquirido através dos textos impressos, em quantidade como nunca antes imaginado, principalmente, no norte da Europa.  Não há janela no quadro de recatada interioridade, e a mulher parece estar esperando um filho, trajada com a mais nova peça de vestuário, moda para andar em casa, chamada “o inocente”, mais tarde peça de alta costura, recebendo o nome de mantô, usado pela primeira vez pela marquesa de Montespan amante de LuisXIV para esconder sua gravidez. Roupa solta que expressa um estilo de vida menos formal. Desponta a moda, e faz com que o pintor coloque a mulher elegantemente trajada, adepta ao novo estilo de vida burguesa. Mas a dama tem em mãos não folheto sobre a moda, comuns à época, o assunto parece ter outra importância.

 Extraordinário século XVII, em que o artista lança seu olhar de mestre no mundo em transformação, com seus paradoxos. Improvável, mas não impossível, que a mulher seja leitora das peças de Molière (1622-1673), que ridiculariza o moralismo da época em Preciosas Ridículas e Escola de Mulheres. O aparelho cognitivo fator decisivo para a evolução do pensamento humano através da leitura. A linguagem escrita como forma de comunicação imediata, facilitadora do aprimoramento e divulgação do saber, contando na modernidade com a impressão.  A sociedade holandesa lia,  e podemos citar Erasmo (1469-1536) no seu Elogio da Loucura. A loucura no sentido de paixão pelo conhecimento, inclusive, paixão pelas navegações e o comércio, em um mar de oportunidades. Mar da modernidade que a civilização passa a navegar. A escritora francesa feminista Christine de Pisan (1365-1430) publica O Livro da Cidade das Damas (1404), onde acusa os homens de críticos das mulheres por serem elas mais inteligente que eles. Precursora do feminismo que explodiu no século XX, necessário que acontecesse, quando algumas mulheres queimaram sutiãs em praça pública. O grande equívoco elas  pensarem em ser iguais aos homens.  De há muito  que as mulheres adquiriram conhecimento através dos textos lidos e publicados, inclusive, da sua própria lavra. A mística social do pintor articulada a uma cosmovisão imanente e histórica, rumo ao progresso humano. A vanguarda do século de Vermeer pouco tem a ver com as futuras vanguardistas do século XXI.

 

 

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