terça-feira, 5 de janeiro de 2021

 

 

                                                UMA ÚNICA VIDA

 

 A primeira vez que adentrei numa escola senti uma alegria inenarrável Simpatizei de prontos com as minhas colegas de classe, futuras amiguinhas com quem eu iria conviver doravante. A professora era amiga de infância da mãe e minha madrinha de batismo. Podia existir algo mais alvissareiro para uma menina nos seus seis anos? O prédio era uma antiga residência, morada-inteira, transformada no Colégio Alberto Pinheiro, tudo muito familiar.

Sair da modéstia  do meu lar e encontrar um mundo anfitrião, onde não me senti visita indesejável, mas fui recebida com o devido respeito e afeto, como deve ser. Criança, tocava de leve na superfície visível do mundo, que também tem uma alma. O invisível aos olhos ainda imperceptível a uma vida em início de formação.

Sei de gênios que custaram a andar, a falar, a ler e escrever, diferente de mim, que fiz tudo isso no tempo certo, inclusive casar e procriar. Recolhia o que estava ao meu dispor, sem pensar em agradecer os bens recebidos, que seriam do meu direito, e eram. Acolhia o que me transmitiam, e meu coração aos poucos se fez abrigo de tudo que amo, tornando-se lar das pessoas que amarei para sempre.

Já disseram com razão que a arte deve cumprir o sua função restauradora. Quero desta forma reverberar o amor e a verdade que me acompanharam toda a vida. Importante é não se perder em tolos devaneios, e fugir do que não vale a pena. A mente um celeiro onde se cultiva saber para o próprio gasto e transmiti-lo aos demais acompanhantes da jornada. E que me desculpem os conselhos emitidos por minha vã filosofia.

Posso dizer sem medo de errar que faço jus a minha existência.

 

VERMEER -- BREVE INTERPRETAÇÃO

                           


 

No quadro  Cabeça de Moça o realce é dado à feminilidade, numa mensageira para a nova sociedade, com respaldo dentro do histórico da humanidade. Educação e cultura específicas, para serem cotejadas com outras filosofias de vida, tolerantes e permissivas. Como diz Montaigne: mais vale uma cabeça bem-feita que bem cheia. Tantas  cabeças ocas, ou cheias demais. Em pleno avanço da modernidade, materialmente promissora, que não sejam esquecidos os valores humanos. O retrato é de uma moça de feição suave, com veste clara, os cabelos arrumados num pequeno véu a cair-lhe para trás, aparentando ser uma noiva, as uniões acontecendo, não mais por interesse de evitar disputas territoriais, religiosas, em acordos afetivos e -financeiros. A juventude que se apronta para viver em condições que lhe favoreçam  individualmente, o  amor compartilhado em nível elevado de relacionamento. A fé não mais vista como um mal, assim como o amor. Uma mulher sóbria, que não aparenta ser o que não é, como acontece com A Moça da Flauta e a Moças de Chapéu Vermelho, com suas cabeças cobertas, os rostos à sombra dos chapéus. Quando o ideal é que a fronte da moça esteja descoberta, a face iluminada, o que requer uma mulher moderna.

Aberta a caixa de Pandora da modernidade a mulher fica sujeita a toda forma de cobertura para sua cabeça, na maioria, ciladas. Mas o pintor tem esperança, aquela esperança que ficou no fundo da caixa. Espera o retorno de Eurídice, saída das profundezas. A imagem reflete autorrealização, entendida como virtude pessoal, o que mais encanta na pintura. Um modelo de virtude, silenciosa. Instruída, ela adquire discernimento para falar  e também calar. Silêncio para cessar a hemorragia verbal de certas crenças e ideologias. O olhar firme da moça, sua testa larga, com os lábios sem vestígio de vinho, ou sangue, como em outras figuras femininas de Vermeer. Uma nova mulher desponta, que olha para frente com determinação e prudência, a postura ética de uma herdeira da casa de Davi, que conquista seu lugar no mundo, “não pela força, nem pelo poder, mas pelo espírito” (Zacarias 4:6). Mas o silêncio feminino pode também significar repressão, censura, ou revelar simplesmente orgulho. A mulher saída das trevas, quando se inicia o processo da educação feminina e produção de riqueza. Para Ortega y Gasset a riqueza das possibilidades humanas devem ser salvaguardadas da tirania, tanto da individualidade, quanto da coletividade. Longe do parasitário homem das massas, ou do explorador do patrimônio material e cultural da humanidade. 

Uma cabeça feminina do século XVII, distante das individualidades mal educadas de hoje, que esbanjam ao bel prazer o que tomam como herança, sem que adquiriram responsabilidade pessoal e social. Os males advindos, inclusive, do crescimento desordenado da população, da tecnologia, do estatismo. A violência passa a ser usada para conter a violência, típico das sociedades massificadas, ou por demais individualistas.

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