quarta-feira, 20 de janeiro de 2021

 

 

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                       MÃE É MÃE!

 

 

O retrato de formatura da filha foi pendurado na parede da sala, onde esteve por alguns anos, entronizada. Completar o curso médio era um grande feito na época, quando as meninas não seguiam adiante com os estudos, paravam para casar ainda muito jovens. Mas com Eleonora e outras pioneiras, foi um pouco diferente, fez o científico, o que para a mulher equivalia ao curso superior. Entrou para a faculdade, sendo escolhida para falar na abertura solene das aulas na Escola de Serviço Social das irmãs Redentoristas. Pio XII tinha falecido naquele ano, o assunto tratado por Eleonora na sua apresentação.

A filha de dona Carmem ainda com aquele sonho das mulheres da sua geração, de  casar para cuidar do marido e dos filhos. Eleonora casou, disposta a procriar uma ninhada, o que  deixou dona sua mãe apenas conformada, e disposta a acompanhar o casal, que foi morar em outra cidade. Não pedia notícias, mas com bela letra escrevia longas cartas, contando o que se passava na família, na cidade, no trabalho, até mesmo o que fofocava com as amigas. Pensava na filha estudiosa, todo tempo dentro de casa, mas não deixaria que ficasse alheia ao mundo lá fora, como via acontecer com outras jovens mães de família. Era o motivo das cartas, além de matar a saudade, contou-lhe  a mãe tempos depois. Cuidava que Eleonora soubesse o que acontecia fora da casa, lesse nem que fosse apenas suas cartas, mas leitora, sem esquecer que a filha que fosse uma boa dona de casa, daí as receitas ao pé das páginas.

A TV ainda era peça rara nas casas, o telefone coisa de rico, as cartas como única forma da comunicação, e nem se falava em Internet. Os veículos de comunicação que haveriam de se tornar febre, de grande utilidade, mas por onde passou a entrar de tudo nas casas, às vezes "panfletagem" da pior qualidade. Eleonora lembra uma ocasião, já com os três filhos pequenos, quando foi visitar uma parenta em outra cidade. Sentiu-se estranha, mal conseguia se expressar, a inteligência embotada. O que havia acontecido, seria uma burra, enquanto a outra dava a ideia de lhe querer fornecer uma tal carteirinha. As cartas da mãe não bastavam, precisava de escola e livros para estudar, resolveu reagir. Não podia ficar daquela forma, uma criança entre crianças, e o que os filhos precisam é de uma mãe inteligente ao seu lado, como sua genial mãe. Voltou a estudar, e foi mais além, fez um concurso, classificada em um dos primeiros lugares.

  

REVELANDO VERMEER

 


            

O quadro de Vermeer Mulher lendo uma Carta á Janela a figura feminina está em local reservado, lendo algo escrito em papel amassado, que seria um panfleto, que andou de mão em mão, quando já se imprimiam livros, início da mentalidade moderna, científica. A comunicação rápida, mas pouco eficiente, sobre  assuntos de interesse pessoal, também de natureza transcendental e de propaganda. A janela do recinto não está apenas aberta, mas escancarada, sinal de liberdade para a mulher, quando há  o perigo do que possa entrar no local, ou na cabeça da leitora... As janelas nos quadros de Vermeer são visíveis, ou invisíveis. Janelas abertas para o que der e vier; meio abertas por prudência; fechadas por receio, ou medo. A metáfora da janela, pode significar liberdade, ou busca, nem sempre boas para a mulher, sua individualidade, que tem o duplo refletido na vidraça, espectro, fantasma. Uma irracionalidade, que provoca na vidraça a imagem fantasmagórica da leitora. O que vem à tona numa pessoa em que falta a ética de uma fé verdadeira.

No medieval a burguesia, ao desenvolve a consciência individual, fica à beira da descrença, quando então achou por bem cuidar do corpo e do fruto desse corpo, ou seja, a alma - um capital, uma herança pós-morte para essa classe.  Segundo a pesquisadora Juliana Schmitt, foi o primeiro passo para a crença utilitarista, que tem o morto como produto, como outro qualquer a ser utilizado, consumido.   Atente-se ainda para a metamorfose que a pessoa sofre, por medo e angústia, uma assombração, processo natural, que se move em direção à entropia e à decadência. No mito de Pandora, o ser curioso e imaturo, não tendo critérios, nem meta a seguir, recua à irracionalidade, libera antigos males.  A mulher com seu rosto refletido na vidraça, sinal de que lhe pesa  a consciência pelos males que cercam, a própria condição humana e a civilização, tênue a fronteira entre o passado, o presente e o futuro, entre a vida e a morte; os mortos no medieval até mais poderosos que os vivos. Foi o que aconteceu no século XIX com os vanguardistas, apelidados de poetas malditos, que Claudio Willer no seu livro “Obscuro Encanto”, considera uma retomada ao que há de mais arcaico, próprio dos cultos e mitologias das sociedades tribais, que se alia à cultura estética e do artificialismo.

A mensagem embutida na pintura de Vermeer é que entre uma vida irresponsável, altamente repressora ou libertária em demasia, escolher viver em paz e prosperidade, como prega a fé renovada adotada pela recém-criada República holandesa. A vida espiritual alicerçada na ética, na lógica, na metafísica, os frutos  necessários para o sustento da vida espiritual, como os frutos naturais e sadios alimentam a vida física. Diferente dos frutos podres da bacia ao lado da mulher, que representa a degeneração dos costumes, o desgaste espiritual e mental. Na vidraça a visage (rosto em francês) de uma mente  jovem, ambígua, que deve amadurecer no entendimento para saber que nem tudo que transmitem é bom,  ainda mais por meios escusos, sem crédito algum. No quadro a jovem mulher lê algo que entristece sua alma, empobrece seu espírito, até mesmo notícia de uma falência. A exploração, a superstição, a pobresa, o que denuncia o pintor alicerçado na ética protestante, que seria analisada por Max Weber, ou seja, a liberdade e o fator econômico, o que não significa massificação, materialismo, uma sociedade espiritualmente sadia, e não supersticiosa. No futuro surgiria o  materialismo histórico de Karl Marx, que se decompôs na história. Também o espiritualismo de Nietzsche, inspirador do fruto podre do nazismo. Dois “filósofos da liberação”: o primeiro, filósofo da coletividade, o segundo da individualidade levada ao extremo. Ao individual e ao coletivo a sociedade moderna, democrática, impõe limites.

 

 

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